quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Sou eu agora meu pai.

O urbano tem silhuetas que acalmam a alma. A pracinha em que estávamos meu pai e eu, não contava com nada de tão extraordinário, apenas uma pracinha Mas não podia dizer o mesmo do sentimento impresso em cada cena cotidiana ali atuada. Nada havia de especial naquele dia para ser feito. Ou pelo menos nada que me venha à memória. Apenas o trivial. Ainda não me lembro porque ali estávamos, naquela banca de jornais, mas consigo ter boas sensações de estar com meu pai.
Não havia nada para ser dito, nada que fosse tão importante como o silêncio que ali pairava. Silêncio nosso entre o barulho urbano. Não era um barulho irritante, mas um barulho murmurante que no fim acalmava, assentava a poeira dos desalentos. Meu pai estava ali comigo e isso era bom de alguma forma. O silêncio daquela manhã falava mais que mil palavras, de toda uma vida. Depois do passeio da pracinha, não tão altos prédios se erguiam no recorte do horizonte. De onde estava podia ver que na verdade não eram exatamente o que se pode chamar de prédios, mas sim coberturas dos antigos e acinzentados estabelecimentos daquela parte também antiga da cidade. Acima da padaria do meio do quarteirão, podia se ver, na sacada com antigos elementos vazados, démodé, um senhor que por ali espiava os transeuntes, mendigos e toda a forma de vida que se movesse mais que sua existência inerte. Na próxima, uma luz amarelada acentuava a imagem do que pareciam ser obras de arte baratas adquiridas em pontos de venda na rua mesmo. Isso me parecia uma pintura dentro de outra pintura; o que se apresentava para mim estava no confuso plano cartesiano do meu olhar. Nada de tão extraordinário para aquela manhã.
Falávamos sobre coisas da vida. Falávamos sem pretensão e sem escolha de termos coerentes. Falava eu de minhas sensações, nada de profundo; falava-lhe do cheiro peculiar daquela tarde, do cheiro do pão quente da padaria cravada no meio do quarteirão, falava-lhe do nada para querer dizer tudo. Meu silêncio por vezes me angustia, mas o que me sufoca são minhas meias-palavras. A impotência do falar sem que se diga nada. Estabelecíamos algum dialogo, e isso era bom.
De alguma forma me sentia com uma prazerosa sensação de que o dia era bom. Havia inúmeras outras coisas com que me preocupar, mas a paz do silêncio balbuciante de nossas palavras me confortava, me levava para perto daquele homem que por muito tempo estivera distante mesmo estando à vista. Não sei a resposta, mas pergunto-me o quanto cada um de nós perdeu de nós mesmos e de um ao outro enquanto tentamos nos enxergar. Algo confuso. O cheiro do pão. O cheiro da tarde. O vento. Cheiro de chão. Cheiro de chuva. O vento. O velhinho já não se debruçava mais. Fugira pela tangente do plano cartesiano que eu enxergava. Os jornais se rebelavam contra o dono da banca como se tivessem vida própria. Chuva. Sinal da chegada do novo. Sinal da mudança do tempo. Ali estava meu pai. Ali estava eu. Serei eu a abrigá-lo. Chuva. Ele aguarda na banca de jornais alheio a rebeldia dos tablóides. Corro pela pracinha, atravesso o passeio. Olho para trás e vejo seu sorriso a me ver correr.
Ao alcançar a calçada que separa o abismo asfaltado da gruta da padaria sinto uma gota que me atinge. Devo apanhar meu pai. Outra gota mais atrevida cai em meu rosto e de repente, como se a água insistisse em invadir o plano cartesiano que não é dela, sinto-me encharcado. Corro aflito pela rua, tudo está longe, quase inalcançável. Não vejo meu pai, mas sei que tenho que buscá-lo, salvá-lo da fúria jornalística. Tenho que ir, mas sinto-me pesado. Sinto o que é ter que salvar, ter que buscar, sinto o que meu pai é. Sinto o que serei. Tenho medo. Pesa-me a chuva. Ofego. Meus joelhos ouviram os tablóides e não respondem mais a mim. A chuva fechou a cortina da rua dos prédios antigos. Nem posso ver a pintura mais. Sou a pintura; era como se a tinta em movimento secasse aos poucos. Os pingos de chuva seriam congelados e junto com eles, eu, que me movia como se a tinta em minhas pernas primeiro secasse. Mas meu pai não secaria, seria pintura fresca. Venceria a peleja dos papéis e me esperaria calado. Calado, mas com um singelo sorriso, afinal me vera correr após tanto tempo. Esse era meu pai, e minha vontade de salva-lo, que nada mais significava que salvar a mim mesmo, me faria seu pai. Entendi que sou eu quem deve calar e esperar. Entendi que sou eu quem deve ficar e cuidar daquele que virá me falar de cheiros e gostos. Sou eu agora meu pai.