“É que há tantos malvados neste mundo, que nem vale a pena reter aqueles a quem apetece sair dele.”
-Diderot-
"Hoje é o dia." Pensou isso no tom mais melancólico que aquela manhã de fim de inverno podia inspirar.
"O último dia!" Kimu já sabia o que fazer, só estava afirmando para si mesmo, de forma que sua psique não arguisse de maneira alguma, de forma que não encontrasse engodos que o tirasse do rumo já traçado há uma vida inteira e nem engenhasse alguma artimanha de última hora; saudade da mãe na lembrança de seus quinze anos quando ganhou da genitora bondosa o primeiro violão, junto com um livro de acordes e um sorriso embotado de lágrimas...a necessidade do perdão do irmão, com quem já não se dava mais tão bem porque o tempo rui laços e kimu não era um bom marinheiro para dar nós firmes... amigos e amores que deixaria ao léu... "Chega! Hoje é o dia! É meu último dia! Dia de acabar com toda essa merda discutida séculos a fio por filósofos, religiosos, psicólogos e muitos outros boçais, muito bem, obrigado!" Pensou isso fazendo uma reverência irônica no ar, deitado na ampla cama daquele hotel. Ao seu lado, a figura mingnon de uma bela garota esboçava um despertar singelo, e ao acordar não deixou de estampar uma profunda tristeza piedosa por trás daqueles belos olhos negros. Sua mão esquerda recostou suavemente no peito de Kimu em uma última tentativa de amenizar a dor daquela alma repleta de medo, angústia, dúvidas e tristeza sem fim.
"Você não mudou de ideia, não é?" Arrancou as palavras de sua garganta numa voz trêmula, que alude ao choro.
"Então é isso?" Perguntou retoricamente, já sabendo a resposta mesmo que essa rasgasse seu peito como a adaga ritualística do harakiri.
"Coração!" Kimu tentava arrancar de seu âmago um resquício de coragem para compor suas falas. "Não tenha medo, tudo ficará bem!" Dizia isso sem saber ao certo se ficaria mesmo tudo bem ou não. A morte é algo tão presente e tão distante, tão certa e tão misteriosa, tão bela e tão mordaz, ele realmente não sabia o que aconteceria, mas sabia que, contrariando toda a sua existência imprestável e covarde, não poderia voltar atrás naquele momento. Não. Não no último dia! Vica, num afã de esconder-se da dor que pulsava em seu peito, tentou esconder suas lágrimas e soluços com suas pequenas mãos trêmulas e finas. Alguns fios de seus cabelos negros, ao ombro, caíam em sua boca e rosto e banhavam-se em lágrimas abundantes que cortavam suas maçãs rosadas, num caos belo de se ver.
Kimu puxou-a para seu peito aflito. "Shhhhh! Calma, coração! Está tudo bem! Você sabia que isso iria acontecer. Só me deixe ir. Me deixa partir daqui, não quero mais ficar, tudo é muito ruim e difícil. Não me faça ficar."
Vica explodia em soluços molhados de dor e lágrimas. Era a sua despedida, sua forma de dizer adeus, um adeus que não espera retorno.
"Um dia me disseram que eu poderia fazer tudo o que eu quisesse. Que eu conseguiria. Nunca consegui de fato nada, nada! Quero que hoje seja a primeira, e consequentemente, a última vez que faço algo por completo e com sucesso." As palavras de Kimu ressoaram em tom solene, quase militar. Vica, afastando seu rosto do peito de Kimu, enxugou suas lágrimas, engoliu os soluços e em tom que muito se aproximava da coragem disse: "Está bem, coração! Está bem!
Vestiram-se.
Tomaram o café no quarto, em silêncio consentido e compartilhado.
Mesmo sabendo que a morte o calaria para sempre Kimu não desejava que suas últimas palavras traíssem seu plano maior, ou envergonhassem sua existência já vergonhosa. Preferiu o silêncio.
Com a cadeira em frente a janela, Kimu fumou alguns tantos cigarros em silêncio nas duas horas que se seguiram.
Cansado demais, preparou o coquetel que tomaria em seguida.
Deitou-se.
Vica encostou seu corpo no dele e restou sua mão esquerda em sua face. Num beijo suave e quente disse adeus em silêncio.
Kimu sentia a explosão ácida de tantos compostos químicos e farmacológicos dentro de si. Como as paredes de um prédio em demolição, sentiu todas as dores do que é a morte e num lampejo maldisse todos os boçais que tinham a morte como estandarte da poesia e do lirismo. Sentia a dor cruel do suicídio, o queimar da sua alma e do seu corpo, a constrição do ar e dos fluídos vitais em seu organismo. Tudo era a maior dor que poderia imaginar, tudo era muito pior do que pensara um dia. Com o negrume da morte e o leve toque da mão de Vica em seu rosto, Kimu desistiu do ar. Estava feito.
Ali estava Kimu; finado, com sua própria mão esquerda na face, sozinho em um quarto de hotel.