quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Então, tudo é ideia.

Março. Primeiro dia de um mês quente, derradeiro do verão.
Vinte e uma horas.

A imagem que se vê é pintura fresca; tinta ainda exalando o odor de óleo; tons pálidos, assim como o ensaio do luto. O que acontece aqui é um diálogo silencioso memorável , que tem origem na origem de tudo: vida e morte.No centro da obra a tríade sagrada familiar: pai, mãe e filho - mãos dadas em uma espera única, inevitável evento - mãe e filho aguardam com pesar a partida do pai rumo a sua última viagem. O patriarca arranca com vigor dos pulmões debilitados os resquícios de ar que ainda permeiam sua vida. Das mãos inertes emana ainda algum calor e os olhos cerrados derramam lágrimas tímidas que demonstram que aquilo é adeus; não o adeus desalentado de quem está ainda preso ao mundo carnal das representações, é o adeus de quem já dialogou com a morte, já a espera, já sente que é o momento.  

Vinte e uma horas e cinco minutos. 

A mãe lembra a terceira faceta da tríade que é necessário que se resgate os sentimentos, é a hora de passar o poema a limpo. Palavras raquíticas, constringidas pela gruta árida da garganta; presas ao mulambo da língua. Aos poucos o filho, balbuciante, diz o que lhe oprime a alma; abre-se o abismo existente entre aqueles dois homens tão próximos e tão distantes - é a hora do perdão - as palavras trêmulas são respondidas com lágrimas de líquido brilhante, o fluído da vida que se esvai. A mãe, com a sabedoria maternal, sutilmente diz que é hora: - "Está sendo desligado." - diz em voz delicada, seguindo seus dogmas. É a hora.

Vinte e uma horas e dez minutos.

Os três corpos, as seis mãos que se entrelaçam. A figura tão aterradora para muitos, a figura ceifadora dos séculos, aquela que dizimou populações, aquela que dilacerou corações menos atentos à sua presença, agora se faz silenciosa e sutil. Ela é quase bem-vinda. É presença aliviante. São momentos de reflexão que transformam eras em minutos. Como a armadura da alma, o corpo, findará? O filho conhece o pai por sua presença física, sua representação platônica. Eis o momento de transformação: o corpo físico, a presença carnal se transmutará em ideia. Aquela figura paternal sisuda, de autoridade, estava se acabando. O físico se tornando etéreo. O filho entende que lhe faltará a presença e lhe restará a ideia, a poltrona do canto da sala ficará vazia, como diz a canção. 

Vinte e uma horas e doze minutos.

É a hora. Em seu último suspiro o pai devolve ao universo a fração de ar que tomara emprestado décadas atrás. Apenas seu corpo jaz no leito. Agora viverá no mundo ideal. Adeus.  

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